
O Benfica, tal como o nome indica, é um clube de bairro. Na designação
Sport Lisboa e Benfica está bem patente que se trata de um clube da capital mas de um bairro específico, nem sequer do centro.
O Sporting, ao contrário do Benfica, é de Portugal, é um cidadão do mundo, com um nome universal, perceptível nos mais recônditos recantos do planeta. É um nome elegante, ilustre, de boa têmpera que enaltece a nobreza dos seus simpatizantes. Um nome que deve ser declamado com o mais fino
british accent, como tão solenemente o Sousa Cintra e o Paulo Bento o pronunciavam.

Eu tenho uma dívida para com o Benfica. Foi no estádio da Luz, inserido na Juventude Leonina, que ganhei estofo para a vida. Quem sobrevive àquele inferno sobrevive a tudo. Estava habituado ao Estádio de Alvalade e tinha a ideia errada de que as pessoas eram todas civilizadas. Aprendi muita coisa com o Benfica, a esquivar-me de uma pedra, a camuflar-me, a fingir-me de morto ou a correr os 100 metros em 11 segundos (a fugir aos Diabos Vermelhos).

Sendo da geração pós 25 de Abril, as partidas para os
derbys na Luz foram o mais próximo que tive das partidas para o Ultramar. Despedia-me da família e dos meus amigos como quem parte para uma guerra, sem saber se voltava. Foi na Luz que estive mais próximo de ver "A Luz", literalmente. Foram várias as vezes que ia levando com um
very light na cabeça!

Uma vez fui apanhado por um grupo de
Orks lampiões que me encostou à parede num desses fatídicos
derbys. Um deles, espumando da boca, vociferou "Este gajo é lagarto!" instintivamente contestei "Não, não sou". De dedo em riste voltou à carga "És sim!". Voltei a esclarecer "Não, palavra de honra que não sou!" Insistiu mais uma vez "Tens cara de menino, deves ser lagarto!" "Não sou, a sério, nem ligo ao futebol, só gosto de
badminton!".
Lá consegui escapar milagrosamente àquela situação.
Só mais tarde, quando um galo cacarejou 3 vezes é que percebi que tinha traído o clube do meu coração. Nunca mais me perdoei, mas ao menos estou vivo para escrever e denunciar a violência no futebol.

Num desses
derbys lembro-me de ter levado com chuva na cabeça, mas curiosamente o céu estava limpo. Só quando olhei com atenção para o segundo anel é que percebi que realmente se tratava de água, mas já processada pelo sistema urinário. Depois dizem que o estádio de Alvalade é que parece uma casa de banho pública gigante!!!
O Sporting e o Benfica estão nos antípodas um do outro, são a noite e o dia, são o azeite e a água, são a Suécia e o Senegal. A partir do momento em que se escolhe um destes clubes, a metamorfose começa, o destino está traçado. Uns começam a comer de garfo e faca, a estudar e a falar línguas enquanto os outros começam a passear de fato de treino ao domingo e a quitar a viatura com penduricalhos, berloques e
ailerons.

É fácil detectar cada uma das espécies. Por exemplo, se vir um homem de lenço ao pescoço, a tamborilar
Wolfgang Amadeus Mozart enquanto recicla papel, qualquer pessoa percebe facilmente que não tem nada a ver com um tipo de palito na boca a puxar bem atrás uma langonha enquanto coça a micose com uma mão e esbofeteia a mulher com a outra.
Estes bonecos também são do livro Caretas do Benfica, o campeão de vendas da colecção caretas. Já são de 2006 mas ainda olho para eles com benevolência, apesar de serem do Benfica.